sábado, 6 de fevereiro de 2010

de todos os cheiros, acabou por ser o seu


Não conseguia dormir. Virou-se de lado retorcida, com as mãos entre as pernas, esperava. Usando um velho casaco de moletom e nada mais abre os olhos. No teto branco ousa pintar vastas realidades, escrever sonetos de profundo sacrilégio e beijos lascivos. Percebe que o casaco ainda tem o cheiro dele. Normalmente era o que lhe confortava durante a noite, mas muito havia mudado desde então. Ela havia mudado.
  Gasto e surrado, tem cara de que lavaram demais, de que usaram demais, como se o tempo não lhe fosse dócil. Descalça sente o frescor do chão contra seus pés andarilhos. Os pressiona para se convencer de que o chão é fixo, de que não corre o risco de cair de novo. É a certeza do presente, do real. Lentamente levanta-se como quem dormiu a vida inteira. Anda nas pontas dos pés, sobre eternos cacos de vidro. Seus frágeis dedos cessam a busca frenética por interruptores, apenas se arrastam por paredes sem destino, sem prever o enredo. Não há mais o desejo por lâmpadas, não teme o comodismo no escuro.E vai assim, adivinhando caminhos pedregosos até a porta da sacada.
  Serena, toca a porta de ferro que boceja ao ranger, como se tomasse vida junto ao resto da casa. Boçejo que esboça um sorriso numa máscara repleta de tragédias gregas; uma proeza. Solta seus cabelos, que perfeitamente desarrumados lhe dão uma inválida e irrelevante sensação de confiança.
  O vento, delicadamente, passa despercebido como brisa na madrugada acariciando seu rosto com intimidade sobredivina. Se delicia ao invadir, ao tocar suas pernas nuas. Já são velhos amigos ela e o vento. Por mais que deseje imensamente, não se ilude pois sabe que o vento é impalpável. Sabe que quando quer foge sem mais nem menos levando consigo cotovias e carinhos. Some para satisfazer outros rostos, para beijar outras pernas. Se conforma com sua previsível imprevisibilidade; idióticamente poética. 
  Acende um cigarro e lhe arranca profundos suspiros enquanto dá nome às estrelas altruístas, que morrem para o deleite dos que não as notam. Cada trago do próprio veneno trás consigo o doçe gozo de um prazer mórbido. Maldito veneno, é uma migalha do que lhe faz a brisa e ainda assim recorre a ele. 
  O cheiro dá espaço para o odor da nicotina. Percebe então a inveja que o cigarro tem daquele perfume inebriante e apaga-o. Por mais masoquista, por mais incômodo que viesse a ser o seu cheiro durante outras noites, ela nunca ousaria trocar por nada o cheiro da saudade. 

3 comentários:

Anônimo disse...

show de bola, hahaha'

Anônimo disse...

Escreve muito! que demais (:

-Liesel Meminger disse...

obrigada (: hehe